- ******LIMITE:
- Glauber Rocha assistiuao filme de Mário Peixoto, em 1958, portanto, cinco anos antes de publicar “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” (Civilização Brasileira, 1963)??????
Para tentar jogar luz sobre o assunto, escrevi, para a Revista de Cinema, a matéria abaixo.
Depois dela, estão registrados depoimentos de Ruy Castro, jornalista e articulista da Folha de São Paulo, além de autor de diversos livros (“Chega de Saudade”, “Garrincha”, “Carmen Miranda”) e do crítico Ely Azeredo (“Olhar Crítico – 50 Anos de Cinema Brasileiro”. E, também, um e-mail apaixonado, direto de Paris, de Sylvie Pierre, autora de livro sobre Glauber Rocha, publicado em francês, pela Editora Cahiers du Cinéma (e traduzido no Brasil). Por fim, uma serena reflexão de Ismail Xavier, estudioso da obra de Glauber Rocha e autor do prefácio da reedição, pela Cosac & Naify, de “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”.
Confira, pois, o material, caso o assunto lhe interesse:
**GLAUBER ROCHA VIU
“LIMITE” EM 1958?
Se o baiano viu o filme de Mário Peixoto, por que omitiu tal informação em seu livro “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”?
- Maria do Rosário Caetano – Na Revista de Cinema (Maio de 2021)
- “Glauber Rocha assistiu, em 1958, a uma sessão de ‘Limite’, de Mário Peixoto, e mentiu em seu livro “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”.
- Essa afirmação, feita por Hernani Heffner, professor da Universidade Federal Fluminense e gerente da Cinemateca do MAM, feita durante masterclass de Denilson Lopes (no lançamento do livro “Mário Peixoto Antes e Depois de Limite”), caiu como uma bomba nos meios cinéfilos. Tanto entre os que têm Mário Peixoto (1908-1992), quanto Glauber Rocha (1939-1981) como razão de culto ou estudo.
- E por quê?
- Porque, se confirmada, tal informação altera o rumo das pesquisas sobre dois dos nomes mais estelares do cinema brasileiro. Afinal, em 1963, Glauber Rocha publicou, pela Editora Civilização Brasileira, o livro “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, uma espécie de bíblia cinemanovista, com a qual ele, “um profeta”, na definição de Paulo Emílio Salles Gomes, dava a Humberto Mauro (1897-1983) o posto de fonte fertilizadora do cinema brasileiro.
- O que dizia, em seu livro-bíblia, Glauber Rocha sobre o contemporâneo do mineiro Mauro, o fluminense Mário Peixoto e seu único filme, “Limite” (1931)? Ou “Limito” — sim com “o” — pois até aqueles anos iniciais da década de 1960, o longa-metragem peixotiano nunca fora lançado comercialmente e só era conhecido em restritos círculos intelectuais e artísticos. Era, sim, um filme-mito e, o mais grave, corria o risco de desaparecer, pois sua matriz degradava-se a cada novo dia.
- A masterclass proferida pelo pesquisador e professor Denilson Lopes, da UFRJ, terminou, pois, com a colocação-bomba de Hernani Heffner, anfitrião de ciclo promovido pela Cinemateca do MAM para festejar os 90 anos da primeira sessão pública de “Limite” (em 17 de maio de 1931). O tema, porém, não foi detalhado no espaço digital.
- Antes de chegarmos ao detalhamento das fontes da informação-bomba de Hernani Heffner, é necessário lembrar que “Limite” foi salvo da ação do tempo por esforços comandados por dois de seus admiradores: Plínio Sussekind Rocha (1911- 1972) e Saulo Pereira de Mello (1933-2020). Este último, um abnegado da causa “Limite”, foi também o responsável pela organização do Arquivo Mário Peixoto.
- A primeira restauração de “Limite” foi feita na década de 1970, com apoio da Funarte. Em 1978, o filme teve sessões públicas, uma delas vista por Glauber Rocha que, a pedido da Folha de S. Paulo, descreveu suas impressões sobre aquele que seria seu “primeiro contato” com o filme (texto publicado em 03-06-1978, na Ilustrada).
- Em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” – o livro ganhou bela reedição da Cosac & Naif, em 2003, com excelente e obrigatório prefácio de Ismail Xavier — Glauber confessa: “Estive com Mário Peixoto duas vezes, apresentado por Brutus (Pedreira)”. (Mário) “é um homem calado, um tanto tímido, mas simpático. Falamos superficialmente sobre cinema”. Para, depois, categórico, afirmar: “O fato é que, lendo e ouvindo tudo sobre o filme, nunca vi ‘Limite’ nem sei se isso será possível algum dia”.
- Antes de fazer tal afirmação, Glauber contara que Georges Sadoul, o pesquisador francês, estivera no Brasil, em 1960, para conhecer filmes brasileiros. Conseguiu assistir a 46 produções brasileiras. Entre elas não estava “Limite”. Desse filme não viu nem “um fotograma”.
- O cineasta baiano afirma, ainda, que o ator Brutus Pedreira, com quem convivera “por três anos, na Escola de Teatro da Universidade da Bahia, então dirigida por Martim Gonçalves” sabia tudo de “Limite” e era o reponsável, como grande conhecedor de música, pela compilação da trilha sonora do filme do amigo Peixoto.
- Glauber registra em sua “Revisão”: “À medida que eu o interrogava, em momentos oportunos, Brutus revelava todos os detalhes da produção: o tempo que Edgard Brasil levava para iluminar um galho de árvore e o rigor com que Mário Peixoto chegava e dizia que aquela folhinha estava ‘um pouco assim’ e a paciência com que (Edgard) Brasil desmanchava tudo para fazer de novo”.
- Em sua masterclass, Denilson Lopes lembrou a filiação de Mário Peixoto, também escritor (poeta e ficcionista), ao grupo “espiritualista” (católico e de direita, com certa proximidade do movimento Integralista, de Plínio Salgado), no qual o nome mais influente era o de Octávio de Faria (1808-1980). O pesquisador lembrou, também, a ojeriza de Mário Peixoto por Glauber Rocha e Paulo Emílio Salles Gomes (1906-1977), politicamente ligados à esquerda. Contou, inclusive, que Paulo Emilio solicitou encontro a Mário Peixoto, que não quis recebê-lo.
- Em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” — depois de reafirmar, outras vezes, que não vira “Limite” – o diretor de “Barravento” (1961) avalia: “Mário Peixoto está para o cinema como Lúcio Cardoso e Octávio de Faria para nossa literatura: é o que se chama um intimista, um místico talvez, um homem voltado para seu mundo interior, inteiramente afastado da realidade e da história. Sobretudo um esteta hermenêutico; um resto de aristocracia marcada pelo bom gosto”.
- Sobre o filme “Limite” — como “não o vira” — Glauber transcreve longo texto de Octávio de Faria e fragmento de artigo que Sergei Eisenstein, diretor do “Encouraçado Potemkin”, teria escrito, depois de assisti-lo (supostamente na Inglaterra). Mais tarde, Saulo Pereira de Mello escreveria em seu livro “Limite” (Editora Rocco, 1996), que o verdadeiro autor do texto eisensteiniano era o próprio Mário Peixoto.
- Sempre se respaldando em outras fontes (Octávio de Faria, Eisenstein, etc), Glauber avança: “No processo dialético da praxis revolucionária, ‘Limite’, e a evidente posição de classe que representa, é uma contradição historicamente superada; na sua mise-en-scene, como a descreve Octávio de Faria, está a moral do autor. Eu tinha dito, e não fui eu quem descobriu, que a moral do cinema novo brasileiro é fatalmente revolucionária”. E mais: “’Limite’ é a substituição de uma verdade objetiva por uma vivência interior, uma vivência formalizada, socialmente mentirosa, sua moral, é um limite”.
- No texto escrito para a Ilustrada, em 1978, portanto vinte exatos anos depois da sessão da Faculdade Nacional de Filosofia, Glauber irá reafirmar o “decadentismo” do filme de Mário Peixoto. O texto glauberiano, cheio de “y” e “z” – pois adotara, naqueles anos exaltados que geraram “A Idade da Terra” (1980), nova ortografia – definiria “Limite” como um filme “decadente e burguês”.
- Hernani Heffner esclareceu, para a Revista de Cinema, as fontes de sua afirmação (“Glauber viu ‘Limite’, em 1958”, portanto cinco anos antes de publicar “Revisão Crítica do cinema Brasileiro”): “Saulo (Pereira de Mello) me mostrou, certa vez, uma foto do Mário Peixoto com o Glauber no restaurante Albatroz, em Copacabana, e comentou que foi tirada no dia em que Glauber viu ‘Limite’ na Faculdade Nacional de Filosofia (FNF)”.
- E mais: “(Paulo Cezar) Saraceni e Mário Carneiro também viram (“Limite”) na FNF. Perguntei isso a eles diretamente em uma palestra na Casa do Saber, em Laranjeiras, por volta de 1995”.
- Na mesma ocasião” – prossegue Heffner — “Mário (Carneiro) afirmou que “Porto das Caixas” (Saraceni, 1962) devia muito a ‘Limite’”. Para acrescentar: “Conheci um dos espectadores da sessão de ‘Limite’ no Cine Capitólio, em 1931, o Alcebíades Monteiro Filho, o Monteirinho, então um jovem aprendiz de cenografia teatral. Ele contou que a maior parte da platéia pareceu não ter entendido o filme, que ele mesmo não compreendeu nada, e que não houve o tal quebra-quebra”.
- Hernani Heffner refere-se, ao falar do testemunho de Alcebíades Monteiro Filho, a outra controvérsia que cerca a primeira sessão de “Limite”: a de que a plateia teria se dividido entre vaias e aplausos, chegando alguns mais exaltados a reações físicas (empurrões, etc).
- A fonte evocada pelo professor da UFF e gerente da Cinemateca do MAM é das mais respeitadas. Saulo Pereira de Mello, além de ter lutado com todas as suas forças para salvar “Limite”, foi um pesquisador que nunca cultivou mitos. Tanto que deixou clara a verdadeira autoria do texto (sobre “Limite”) atribuído a Eisenstein.
- Uma pergunta, porém, se impõe: por que, aos 24 anos, Glauber, que em março do ano seguinte (1964) faria a primeira sessão pública de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, negaria conhecer “Limite”? Esse novo enigma se impõe.
- Hernani Heffner pondera: a resposta “está no texto de ‘Revisão Crítica do Cinema Brasileiro’”. Para o pesquisador, “a opção de Glauber, em 1963, era muito consciente e fazia muito sentido”.
- Fica, pois – em nome de pesquisa rigorosa (e já que Mário Peixoto, Saulo Pereira de Mello, Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro estão mortos) – a necessidade de se comprovar que a foto (feita no restaurante Albatroz) comemorava, realmente, a sessão de “Limite” à qual Glauber comparecera (em 1958). E, não restando nenhuma dúvida, refletir sobre as razões que levaram o baiano a obliterar, em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, o conhecimento prévio que teria de “Limite”.
- O diretor de “Cruz na Praça”, “Pátio” e “Barravento” mentiu (sobre conhecimento prévio de “Limite”) para, assim, potencializar a força de Humberto Mauro e seus filmes como matriz cinemanovista? Conhecer “Limite” enfraqueceria o legado mauriano?
- Denilson Lopes, que promete ampliar as pesquisas que deram origem ao seu e-book “Mário Peixoto Antes e Depois de Limite” tem mais um desafio para suas investigações acadêmicas.
* REFLEXÕES DE
RUY CASTRO
Rô querida.
Não tenho dúvida de que meu amigo Hernani Heffner ouviu de Saulo Pereira de Mello, Paulo Cezar Saraceni e Mario Carneiro que Glauber Rocha assistiu a “Limite” em 1958.
O que me intriga é a data de 1958. Naquele ano, Glauber tinha 19 anos, morava em Salvador e ainda era estudante. Como ele fez para, vindo ao Rio, ter conseguido ver o filme? Já conhecia o Saulo, detentor da única cópia? E por que o Saulo, que evitava passar o filme para não desgastá-lo, o mostraria a um jovem desconhecido, e não aos muitos críticos do Rio que eram doidos para assisti-lo? Saulo, Saraceni e Mario tinham certeza de que foi em 1958? O que o nosso querido Ely Azeredo acha dessa história? Beijos, Ruy
- O CASO LIMITE
POR ELY AZEREDO
Curioso: Glauber, ao assumir a direção de BARRAVENTO (1962), que Luiz Paulino dos Santos deixara inacabado, alterou o roteiro para dar destaque ao que havia de problemática social (procurando apagar um certo misticismo de origem). Foi sua oportunidade de começar na longa metragem.
Não creio que tenha visto o inigualável LIMITE em 1958, como alguns afirmam.
No Rio pouquíssimos “iniciados” conheciam esse clássico.
Tive oportunidade de ver LIMITE em uma sessão especial muitíssimos anos depois.
Não sei de críticas escritas por Glauber nos anos 50, mas nos encontramos algumas vezes no Rio nos anos 50/60. Comigo nunca mencionou a obra de Mario Peixoto. Mas sei que (antes mesmo de assistir) ele desdenhava LIMITE como “esteticismo”. Mas o curta “O Pátio”, filme de estréia de Glauber, não passava de um ensaio de “esteticismo”.
Acho possível que ele nunca tenha visto LIMITE. Criticar filmes sem ver não era raro em seu currículo.
Bj. Ely
POR ISMAIL XAVIER
Oi, Rosário
Não sou um expert do histórico da cópia de Limite. Tenho alguns dados em função de contato que tive com Plínio Sussekind Rocha em 1972, a mim apresentado por Paulo Emílio que o havia conhecido na França no final dos anos 1930, e partilhava com ele as idas à recém fundada Cinemateca Francesa.
Eu estava começando meu trabalho de mestrado sobre o início da teoria e da crítica de cinema na França a partir da noção de Sétima Arte formulada no Manifesto de Ricciotto Canudo em 1911. Plínio foi membro fundador do Chaplin Club, junto com Otávio de Faria e outros jovens cariocas, em 1929. Era um grupo defensor radical do cinema mudo, contra o cinema sonoro que consideravam um pólo de decadência da estética do cinema, para eles arte visual por excelência. Eles foram entusiastas receptores de Limite, com Otávio chegando a fazer comentários de super elogio ao filme. Logo em seguida, o Chaplin Club se dissolveu.
Plínio continuou ligado a Mário Peixoto e, depois de sua morte, guardou e cuidou da cópia do filme. (Carlos Augusto) Calil sabe melhor do que eu a história do filme nas décadas seguintes. Plínio seguiu a carreira das ciências e se tornou professor de Física na Universidade do Brasil (hoje UFRJ). Projetava filmes para seus alunos do curso de física nos anos 1950, incluíndo Limite cuja cópia já apresentava muitos problemas.
Jamais ouvi do Plínio qualquer observação sobre o fato de Glauber ter assistido ao filme. O Paulo Emilio tampouco fez qualquer referência a isto, mesmo quando, já nos anos 70, projetou Limite – recém restaurado – em uma sessão feita para nós alunos e convidados na sala de projeção do curso de cinema da ECA-USP.
Estes são os dados que eu tenho. Não respondem à sua questão. Fiquei também curioso. Vale uma sondagem. Vamos ver. Abraços, Ismail
*****GLAUBER ROCHA ASSISTIU AO FILME “LIMITE” EM 1958 e COMETEU “FRAUDE INTELECTUAL” EM SEU LIVRO “ REVISÃO CRÍTICA DO CINEMA BRASILEIRO”?
POR SYLVIE PIERRE (De Paris)
Olá meus amigos brasileiros
Sobre a relação entre Glauber Rocha e
“Limite” – Claro que tal relação é um pouco carregada de ambiguidade. E a quem for capaz de esclarecer o assunto, eu dou meus parabéns. Não me meto nessas coisas, sobretudo da cultura, na qual não deixo de ser condenada pelo ponto de vista da gringa europeia, olhando de longe os dados culturais básicos da cultura brasileira. Mas francamente, mentira do Glauber sobre o fato de ter visto, ou não, e quando exatamente, o “Limite”, isso seria de verdade um assunto tão importante?
Tão importante a ponto de prejudicar seja a beleza modernista radical do “Limite”, seja o gênio empolgante do falar e do escrever glauberiano sempre revoltado?
Bendito seja o cinema brasileiro que produziu a pérola rara de” Limite”, e o diamante bruto do agitado e contraditório Glauber Rocha.
Sem falar da energia de liberdade no Brasil que vai, com certeza, mandar às favas…o que tem obviamente, hoje em dia, de ser mandado. Mas quanto aos maiores artistas do país – não precisa, me parece – jogar uns contra os outros, que ensemble, together, fazem do Brasil um país que merece estar melhor do que está agora.
Com meu sinceríssimo carinho.
Sylvie Pierre Ulmann